terça-feira, 7 de julho de 2009

CRISE DO JUDICIÁRIO COMO EXTENSÃO DA CRISE DO DIREITO CONTEMPORÂNEO

O mundo não mais comporta um judiciário que, a pretexto de promover a justiça, barateie os direitos fundamen tais do cidadão
O conflito estabelecido entre os integrantes do Poder Judiciário (presidente do STF versus juiz federal de primeira instância), todo estampado nas capas dos principais jornais e periódicos nacionais e estrangeiros, não fosse hilário, é produto da má compreensão que faz grande parte da comunidade jurídica nacional, em especial a dos juízes brasileiros, do novel modelo de hermenêutica edificado, a partir da segunda metade do século XX, pela jurisprudência e doutrina estadunidense, alemã e italiana, introduzida recentemente no Brasil pelos ministros do STF.
Esse novo modelo exegético rechaça a concepção de um Direito formado apenas por regras (system of rules), cuja estrutura não admite ponderações, pautada que está na idéia de subsunção. É dizer, segundo a fórmula hostilizada, a regra detém estrutura fechada - dado um fato deve ser a sanção - propiciando solução do tipo tudo ou nada (all-or-nothing-fashion); o juiz, preso ao texto da lei, deve aplicar o direito de maneira a prescrever uma mesma sanção, por exemplo, ao que rouba um pote de manteiga para saciar a sua fome e àquele que rouba um banco; é típica desse pensamento a obrigatoriedade de se algemar todos aqueles alçados à prisão. O sistema de regras, durante séculos, formou juízes aprisionados à idéia de uma legitimação do direito em legalidade e por confundir legalidade com o império da lei formal (Torres, 2007). Não por outro motivo o juiz, alienado ao vetusto sistema jurídico, decide segundo a sua vontade e livre convicção (Toledo, 2003). A vontade do juiz, por expressar a despótica regra, é inquestionável, absoluta, mesmo nas hipóteses em que acarretar extrema injustiça.
O novo modelo jurídico que se anuncia em oposição ao positivismo concebe o Direito a partir de princípios, verdadeiros mandados de otimização (Alexy, 1993), que permite ao jurista identificar nas decisões judiciais a aproximação da justiça. Uma injustiça extrema não será considerada parte integrante do Direito (Vigo, 2002). Os princípios influenciam a interpretação e aplicação do Direito, inclusive das regras deitadas na órbita infraconstitucional, considerando o juiz a ordem valorativa constitucional como vetor e fundamento de suas decisões pela máxima da proporcionalidade - adequação, necessidade e ponderação (Toledo, 2003), sob pena de lesionar direitos inalienáveis do homem promovendo, com isso, a mais odiosa injustiça. Os fins não mais justificam os meios. É necessário demonstrar a necessidade e adequação dos meios aos fins almejados.
Revolvendo ao conflito entre juízes, tema deste ensaio, tem-se no magistrado de primeira instância, que determinou a prisão judicial (inclusive à revelia de ordem superior), a presença de um exacerbado positivismo, vertido na decisão prisional pautada em um artigo de lei interpretado isoladamente e a sua subsunção ao possível fato materializado pelos acusados. De outro giro, os vetores que respaldaram a decisão do presidente do STF, ordenando a soltura, encontram legitimação nos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e ponderação. Sinaliza, de há muito, o STF que as regras processuais que regem a prisão processual do indivíduo, prescritas no direito infraconstitucional, devem guardar ponderação com os direitos naturais do homem (Natural Rigths) positivados na Constituição Federal, dentre eles, o de maior destaque, o da dignidade da pessoa humana.
O mundo não mais comporta um judiciário que, a pretexto de promover a justiça, barateie os direitos fundamentais do cidadão. O Brasil não quer justiceiro, clama, sim, por juiz que trate a ordem jurídica como um sistema de valores, princípios e regras, que decida os conflitos subjacentes com máxima imparcialidade, que maneje com propriedade a razoabilidade, proporcionalidade e ponderação, que compreenda, defenda e efetive, enfim, o Estado Democrático de Direito.
Não convence o senso comum, tão pouco impressiona o espetáculo e a sua pirotecnia empregada a pretexto de se combater a corrupção, verme que destrói as estrutura éticas e morais da sociedade brasileira. O direito é dialético, de modo que um caso possui, no mínimo, duas versões - a de quem acusa e a do acusado. O juiz, diante das versões, revestida da mais elevada imparcialidade, após formar a sua convicção ao cabo das provas, dará àquele o que lhe pertence por direito. Ao julgar deve o magistrado fundamentar sua sentença em um direito forte, que transcende as regras e encontra boas respostas nos princípios (Dworkin, 1986). Bem andou o presidente do STF ao fazer respeitar em sua decisão os preceitos do Estado Democrático de Direito, os princípios e garantias fundamentais do cidadão.
Não se trata de defender a impunidade, a corrupção, nem tão pouco os ricos em prejuízo dos pobres. Cumpre, sim, lutar para que os valores constitucionais ressaltados nas decisões da Corte Suprema sobranceiem a atuação de todas as repartições públicas e privadas da federação. Que o Judiciário, em todas as suas instâncias, na riqueza e na pobreza, sobreleve suas decisões aos valores e princípios contidos no ordenamento jurídico pátrio. Que se constitua o Brasil, de uma vez, em um verdadeiro Estado Democrático. Que o Judiciário assuma o seu papel de protagonista nessa importante empreitada. Não foi por outro motivo que Bobbio afirmou que vivenciamos a era dos direitos ou o tempo do Poder Judiciário.